Carta que uma adolescente não teve tempo de escrever à sua mãe
“ Querida mãezinha...
Hoje venho te segredar um recadinho
muito especial. Sabes o que é? Estou deixando de ser criança para entrar
em uma, na opinião da humanidade, difícil e delicada fase da vida que é
a adolescência. Alguns adultos, estressados, consideram-na a
“ABORRECÊNCIA” , criando para nós mais este rótulo, o que muito
discordo.Sabes por quê? Porque se hoje são adultos, um dia já foram
adolescentes e não gostariam se fossem tratados assim. Além do mais,
eles é que nos aborrecem com essa mania de que são perfeitos demais
enquanto que nós, adolescentes, para muitos, somos vistos apenas como
irresponsáveis, inconseqüentes, e, agora, também, como aborrecentes.
A busca da independência fala mais alto!
Certamente mais tarde, com mais
lucidez, sejamos capazes de avaliar e muito nos arrependermos das
catástrofes deixadas para trás.
Tudo isso em nome da nossa tão sonhada autoafirmação!
Confesso que os anseios desta fase
começam a inquietar-me o coração. Nas minhas mais profundas reflexões o
meu interior é tomado por sensações de vazio, angústia e medo.Procurando
refugiar-me no mundo exterior deparo-me com algumas incômodas situações
insistindo em denunciar que o meu corpo está em transformação
distanciando-me cada vez mais dos padrões de beleza impostos pela mídia.
E o medo da rejeição nesta fase, o que nos dá tantos arrepios, às vezes
nos levando a nos afastar até mesmo das pessoas a quem mais amamos!
Mãezinha, querida, neste momento tão
especial, por todo o amor que eu te tenho, peço-te o teu perdão
antecipado por todas as vezes que, mesmo inconsciente, julgando-me
superior a ti, vier a achá-la chata , careta, controladora... E sentir
vergonha de estar ao teu lado por causa dos teus excessivos cuidados ,
muito vindo a magoar-te o coração.
Vamos vencer juntas esta fase! Amo-te muito, bem o sabes!
Neste raro momento de tamanha lucidez
interior reconheço, mãezinha querida, que para todas as mães, nós,
filhos, seremos sempre suas eternas e desprotegidas criancinhas, ainda
que já bem velhinhos!
Como sei que serás sempre a minha
eterna guardiã, guardes no fundo do teu coração esta minha cartinha a
qual poderá vir a se tornar a tua cartilha diária até esta fase passar.
Ah, e não te esqueças! Nunca deixem que nos chamem de aborrecentes!”
(Extraída do livro Resgatando os Valores da Escola Pública - Maria Luciene - págs. 47 - 51)
Publicação: Maria Luciene - Jornal Folha de Minas – Junho/2006
Kênia Regina faleceu em junho de 2006 ,aos 16 anos de idade, vítima de
acidente de moto, uma semana após participar de uma excursão à cidade de
Ouro Preto – MG- em companhia dos professores e colegas da Escola
Estadual Maria Andrade Resende – Belo Horizonte – MG - escola em que
cursava o 2º ano médio. O inesperado falecimento de Kênia surpreendeu
até mesmo aos pais, que não sabiam da aventura da filha. Acreditaram que
ela estivesse passando a tarde daquele domingo na casa de uma colega,
conforme afirmara e obtivera permissão para tal. Era dia de jogo da
Seleção Brasileira. Tendo conhecido o amigo da colega naquela mesma
tarde, os dois partiram para uma, na opinião de ambos, rápida aventura à
cidade de Ouro Preto , sendo que Kênia Regina confiou à colega querer
retornar à cidade apenas para provar o chocolate com chantilly que não
experimentou no dia da excursão. O que Ela não sabia era que aquele
chocolate teria um gosto assim tão amargo. O rapaz também faleceu no
acidente.
Essa carta foi uma homenagem dos colegas e professores a Kênia Regina.
Foi também um alerta aos adolescentes para que valorizem a vida sem
ultrapassar suas limitações.
ARMADILHAS DO DESTINO
A ideia de escrever essa carta surgiu de uma conversa entre uma aluna,
sua mãe e eu, certa manhã de março de 2006. A mãe, atônita bate na porta
da sala e, acompanhada pela presença da filha que naquele exato momento
perdia a primeira aula , se apresenta, tão logo a porta é aberta,
buscando informações mais precisas sobre o comportamento e o rendimento
da filha. Sem entender o porquê de tamanha aflição, disse-lhe ter
sentido a falta da garota na sala de aula logo que entrei, concluindo
ser a mesma uma excelente aluna, frequente em todas as aulas, cumpridora
dos deveres, boa conduta ética, não havendo portanto nenhuma reclamação
a ser feita. A senhora, demonstrando um semblante de muita aflição,
expôs-me o porque de toda a sua decepção com a filha em quem até então
tanto confiara: há dias a menina vinha argumentando para a mãe ser
necessário permanecer por mais algum tempo no colégio, após o termino
das aulas, alegando precisar fazer trabalhos escolares marcados pelos
professores. Desconfiada da frequente situação a mãe resolve seguir a
filha e se depara com a árdua e inaceitável realidade de que sua filha,
que jamais a havia decepcionado, não era mais aquela submissa e
obediente garotinha de antes. Como em um passe de mágicas o tempo havia
passado e a sua tão amável e obediente menina começava a ensaiar os
primeiros passos rumo ao desabrochar da adolescência! Aquela garota,
junto a um grupos de colegas, levava roupas na mochila e assim que o
sinal anunciava o término das aulas trocavam o uniforme e iam se
encontrar com seus namoradinhos em local descampado!
Ouvi atentamente o desabafo daquela mãe que provavelmente esperava minha
atitude de reprovação pelo acontecido. Eu não estava decepcionada.
Minha aluna era brilhante. Reservada, educada, caprichosa e dedicada aos
estudos. Estava apenas surpresa diante da estupefação da mãe e de tudo o
que ouvira. E assim, enquanto conversávamos, eu buscava a todo instante
encontrar pontos positivos naquela assustada e envergonhada garota,
procurando meios para acalmar sua mãe ,entendendo perfeitamente a
aflição de ambas: A filha não conseguia esconder seu constrangimento por
ter traído a confiança da mãe, e agora, também, da professora com quem
tinha tanta afinidade. A mãe, por sua vez, se via obrigada a admitir,
ainda que inconsciente, muito mais a sua surpresa diante da nova
realidade do que propriamente a sua decepção com a filha, por maior que
esta tenha sido.
Como aquela tímida garota não deveria estar necessitando de outros tipos
de cuidados maternos ultrapassando os limites da preocupação e da
vigilância!
Como aquela mãe não deveria estar necessitando de alguém que naquele
momento a orientasse sobre como lidar com essa nova fase da vida da sua
filha!
Ambas precisavam urgentemente de ajuda!
Em um determinado momento da conversa eu disse àquela senhora que o
acontecido seria sim um marco na vida da filha o qual, mesmo com o
passar dos anos , ela jamais o esqueceria. Contudo, afirmei-lhe com
veemência haver sido único o episódio ocorrido.Concluí fazer a afirmação
com tamanha altivez por confiar na integridade da minha aluna.
Conversamos por mais alguns instantes. A mãe, já mais calma, antes de se
despedir pediu-me educadamente que conversasse com sua filha
ressaltando o quanto a mesma me respeitava e me queria bem. Naquele
instante olhei para a garota e percebendo-a bastante envergonhada,
entendi que seria melhor não ficar para assistir às aulas naquela manhã ,
devendo acompanhar sua mãe de volta para casa. Foi então que a aluna,
tendo se mantido calada e cabisbaixa durante todo o tempo em que durou a
conversa, lançou-me um suplicante olhar argumentando preferir ficar na
escola. Apesar de só ter querido ajudar percebi o quanto havia sido
infeliz na observação feita! Realmente, naquele exato momento, mãe e
filha necessitariam de um tempo para se recomporem intimamente.
Certa de que sua mãe partira mais calma, entramos juntas na sala e
aquele finalzinho de aula prosseguiu como se nada houvesse acontecido ,
para decepção da turma que parara de fazer as atividades , atenta à
conversa por detrás da porta que se mantivera todo o tempo encostada.
Era de estranhar o silêncio advindo de uma turminha de 7º ano ,com 39
alunos, jamais bem comportados! Tão logo a porta se abrira difícil fora
correrem para os seus assentos sem se atropelarem entre si.
Nos dias que sucediam o acontecido eu ia percebendo a aluna cada vez
mais próxima a mim. Vez por outra ela , conhecendo bem a forma como eu
procurava conduzir as minhas aulas, timidamente se dirigia à minha mesa,
no intuito de agradar-me oferecendo-me livrinhos educativos que
pudessem ser úteis ao aprendizado da turma. Sempre que o fato acontecia
agradecia-a pela gentileza e aproveitava a oportunidade para perguntar
como iam as coisas em sua casa, a qual baixava a cabeça e respondia,
quase sussurrando, que estava tudo bem. Como se esquivava ao assunto
restava-me respeitar o seu silêncio. Aproximando a data do Dia das Mães
propus-lhe a escrita de uma cartinha à sua mãe prometendo ajudá-la caso
aceitasse. E foi assim que a singela cartinha fora ganhando forças ,
acabando por se tornar o retrato de praticamente todo adolescente,
impossível de ser lida apenas por mãe e filha entre quatro paredes.
Nota
O objetivo do editor do jornal para o qual eu trabalhava na época como
colunista seria que a carta fosse publicada na edição do Dia das Mães de
2006, o que não aconteceu.Trazia o seguinte título: “Carta Que Todo
Adolescente Gostaria de Escrever à Sua Mãe Neste Dia Tão Especial” . O
editor insistia na publicação. Como já havia passado o Dia das Mães ,
pensei em mudar o título. No mês seguinte aconteceu a fatalidade
envolvendo uma outra aluna minha, de outra escola. Percebendo a tristeza
dos colegas e o seu assento vazio nas aulas de literatura, propus-lhes
uma homenagem à colega ausente. Imediatamente a ideia fora aceita.
Discutimos um novo título que não se distanciasse muito do atual.
Entramos em contato com a família, que imediatamente se dispôs a
colaborar com o envio de fotos e depoimento sobre o fato ocorrido. A
publicação teve grande repercussão vindo a se tornar assunto de debate
em sala de aula de diferentes escolas. Muitos me procuravam para saber
se a ex-aluna, Kênia Regina, havia deixado a carta escrita. Um jornal de
outra cidade se interessou pela publicação. A concessão fora feita e a
carta ainda mais divulgada. E assim obtive, finalmente, a oportunidade
de demonstrar o meu repúdio à expressão contemporânea “ABORRECENTES” ,
hoje muito comum no vocabulários dos pais e psicólogos.
Somente depois dos acontecimentos dos fatos pude compreender as
armadilhas do destino, visto que a carta estava pronta para ser
publicada no Dia das Mães e não o foi.