INESQUECÍVEIS LEMBRANÇAS - III
ROCHEDO
(Maria Luciene)
(Fragmento da obra A Pureza De Um Anjo Muito Especial - Luciene Maria - 2008)
ROCHEDO
(Maria Luciene)
Não
me recordo a idade que tinha quando o ganhei de presente. Só sei que
foi difícil controlar a emoção ao receber das mãos de minha mãe aquela
caixinha, bem pesadinha que, ao abri-la, mal pude acreditar no que via.
Para minha surpresa, encolhidinho dentro da caixinha, todo assustadinho,
lá estava um cachorrinho. Era um cachorrinho de verdade! De pelo macio,
todo rajadinho de preto e branco, percebia-se que era um filhote
recém-nascido. Talvez eu tenha ficado tão pasmada por nunca ter tido um
contato assim tão direto com um bichinho tão pequenino, tão frágil, tão
inofensivo.
Chamava-se
Rochedo. Já adulta, surpreendida embalada em recordações, as
interrogações se perdiam no espaço: Por que assim se chamava? Quem lhe
teria escolhido esse nome?Teria sido minha mãe? Minhas irmãs?Ou, quem
sabe, até mesmo eu? Não. Provavelmente não fora eu. Esse nome não era
comum e pela redondeza não existia nenhum animalzinho assim chamado.
Esse negócio de nome é mesmo uma coisa complicada; deixa pra lá! O
importante é que Rochedo ia crescendo, engordando, o pelo cada vez mais
macio e aveludado, o preto cada vez mais preto se destacando no
branco... Vivia sempre limpinho, cheirosinho, e, se já era manhoso,
parecendo compreender o carinho do apelido, mais manhoso ficava quando o
chamávamos de “CHEDIM”. Ficara pouco maior que um cachorrinho pequenez.
O bom mesmo era pegar um balde cheio de água, o seu sabonete e a sua
buchinha que já ficavam separados e começar a ensaboá-lo jogando-lhe
bastante água para retirar o excesso de sabão, indo em seguida,
escová-lo ao sol enquanto secava. Alguns fiapos de pelos ainda não muito
secos insistiam em ficar arrepiados. Era chegada a hora de correr até a
caixinha de grampos de Maria Fátima e ir colocando um a um nas partes
arrepiadas. Quando todo o pelo já estava bem sequinho e comportado,
jogava-lhe dos meus talcos, dando-lhe então a última escovada. Não
poucas vezes ouvi minha singela irmã reclamar com mamãe:
- Mamãe, os meus grampos estão desaparecendo e eu não vejo ninguém usar grampos nesta casa!
Evidentemente as duas sabiam
onde iam parar os grampos, porém nenhuma delas me censurava pela
façanha. Longe estava eu de imaginar que dentre tão pouco tempo minha
irmã, Maria de Fátima, viria se tornar minha segunda mãe, minha mãe
substituta. Hoje, mesmo sofrendo, compreendo que da dimensão em que se
encontra nossa sintonia em nada se abalou: Se eu sofro, ela também
sofre; se estou triste, se entristece; se tenho, por vezes, momentos de
alegria, ela também se alegra ...
Na
manhã daquele domingo, ao avistar a porta da sua casinha aberta,
percebendo que Rochedo não se encontrava nem lá dentro nem pelo resto do
quintal, levei o maior susto! Fora toda uma manhã de ansiedade e
procura, o que não resultara em nada. Ninguém. Nenhum vizinho dava
notícias. Minha irmã, Maria Lúcia, meus primos, eu e até mesmo a
garotada da rua nos mobilizamos na busca e aquele eco, soando sem parar
em meus ouvidos, deixava-me cada vez mais trêmula, triste, com o olhar
nadando em lágrimas:
- Chedim...Chedim...Chedim...
Quase ao final da tarde veio a
confirmação: ao nos aproximarmos da chácara do Sr. Júlio, um senhor
muito branco, meio gordo, sério, de meia idade, que vivia sozinho,
acompanhado apenas por seus empregados e adorava amedrontar a criançada,
tomamos conhecimento do acontecido: Rochedo, aquele cachorrinho
obediente que jamais cometera tal travessura antes, justo naquela
madrugada resolvera fazer uma visita à chácara acabando por ser
confundido com ladrão, levando um tiro de um dos seus empregados, o
Ataíde, que era manco, cujo problema apresentado na perna o fazia se
destacar dos outros empregados. O tempo que levou para morrer e se
morreu no mesmo instante eu ignorava. O que não dava para ignorar era
que, infelizmente, o meu querido Chedim estava morto e enterrado debaixo
daquele enorme pé de pãina que havia em frente à chácara, onde tantas
vezes, em horário de verão, Maria Lúcia e eu, fugindo do sol, buscando
abrigo sob aquela frondosa árvore, fomos esperar mamãe retornar do
serviço.
Ambos bem próximos, fora possível ver a terra ainda bem fofa que cobria aquela pequena cova.
Meu primo mais velho não se conformava:
- Aquele Ataíde! Aquele ingrato! Aquele manco!...
O mais triste mesmo fora chegar
em casa, encontrar minha mãe sentada à mesa da cozinha com um doce de
leite esfriando no prato para mim,acabado de sair do fogo, a rapa na
panela também a me aguardar, provavelmente já sabendo do acontecido e
idealizando um jeito mais suave para dar-me a notícia quando, num
impulso repentino, - vendo seus olhos brilhando em lágrimas, num esforço
para se controlar e forçar um sorriso - consegui pronunciar apenas a
palavra M A M Ã E...mergulhando-me em seu colo.Quanto mais ela me
apertava, mais eu chorava e soluçava.O pulsar dos nossos corações se
tornou um só.Compreendi que tínhamos a mesma sensibilidade e sofríamos
pelo mesmo motivo.
Talvez
tenha sido a ausência de Rochedo que me fez perceber um pouco mais em
minha mãe, compreendendo assim que seu estado de saúde não ia nada bem. O
mal que lhe afligia estava eu longe de o saber.Só sei que, tão logo o
nosso Bom Deus levou Rochedo, levou também a minha mãezinha; isso porque
o meu pai ele já o havia levado antes mesmo que eu aprendesse a falar e
pudesse chamá-lo de “PAPAI”.
Aos
domingos, as cinco órfãs que ocupavam sempre o mesmo banco, eram o
destaque geral da igreja. As três mais velhas de preto fechado e as duas
mais novas de preto e branco. E assim, despedi-me da minha vida de
menina...
(Fragmento da obra A Pureza De Um Anjo Muito Especial - Luciene Maria - 2008)