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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

RECORDAR É VIVER...


INESQUECÍVEIS LEMBRANÇAS - III




ROCHEDO

(Maria Luciene)
Não me recordo a idade que tinha quando o ganhei de presente. Só sei que foi difícil controlar a emoção ao receber das mãos de minha mãe aquela caixinha, bem pesadinha que, ao abri-la, mal pude acreditar no que via. Para minha surpresa, encolhidinho dentro da caixinha, todo assustadinho, lá estava um cachorrinho. Era um cachorrinho de verdade! De pelo macio, todo rajadinho de preto e branco, percebia-se que era um filhote recém-nascido. Talvez eu tenha ficado tão pasmada por nunca ter tido um contato assim tão direto com um bichinho tão pequenino, tão frágil, tão inofensivo.

Chamava-se Rochedo. Já adulta, surpreendida embalada em recordações, as interrogações se perdiam no espaço: Por que assim se chamava? Quem lhe teria escolhido esse nome?Teria sido minha mãe? Minhas irmãs?Ou, quem sabe, até mesmo eu? Não. Provavelmente não fora eu. Esse nome não era comum e pela redondeza não existia nenhum animalzinho assim chamado. Esse negócio de nome é mesmo uma coisa complicada; deixa pra lá! O importante é que Rochedo ia crescendo, engordando, o pelo cada vez mais macio e aveludado, o preto cada vez mais preto se destacando no branco... Vivia sempre limpinho, cheirosinho, e, se já era manhoso, parecendo compreender o carinho do apelido, mais manhoso ficava quando o chamávamos de “CHEDIM”. Ficara pouco maior que um cachorrinho pequenez. O bom mesmo era pegar um balde cheio de água, o seu sabonete e a sua buchinha que já ficavam separados e começar a ensaboá-lo jogando-lhe bastante água para retirar o excesso de sabão, indo em seguida, escová-lo ao sol enquanto secava. Alguns fiapos de pelos ainda não muito secos insistiam em ficar arrepiados. Era chegada a hora de correr até a caixinha de grampos de Maria Fátima e ir colocando um a um nas partes arrepiadas. Quando todo o pelo já estava bem sequinho e comportado, jogava-lhe dos meus talcos, dando-lhe então a última escovada. Não poucas vezes ouvi minha singela irmã reclamar com mamãe:

- Mamãe, os meus grampos estão desaparecendo e eu não vejo ninguém usar grampos nesta casa!

Evidentemente as duas sabiam onde iam parar os grampos, porém nenhuma delas me censurava pela façanha. Longe estava eu de imaginar que dentre tão pouco tempo minha irmã, Maria de Fátima, viria se tornar minha segunda mãe, minha mãe substituta. Hoje, mesmo sofrendo, compreendo que da dimensão em que se encontra nossa sintonia em nada se abalou: Se eu sofro, ela também sofre; se estou triste, se entristece; se tenho, por vezes, momentos de alegria, ela também se alegra ...
Na manhã daquele domingo, ao avistar a porta da sua casinha aberta, percebendo que Rochedo não se encontrava nem lá dentro nem pelo resto do quintal, levei o maior susto! Fora toda uma manhã de ansiedade e procura, o que não resultara em nada. Ninguém. Nenhum vizinho dava notícias. Minha irmã, Maria Lúcia, meus primos, eu e até mesmo a garotada da rua nos mobilizamos na busca e aquele eco, soando sem parar em meus ouvidos, deixava-me cada vez mais trêmula, triste, com o olhar nadando em lágrimas:

- Chedim...Chedim...Chedim...

Quase ao final da tarde veio a confirmação: ao nos aproximarmos da chácara do Sr. Júlio, um senhor muito branco, meio gordo, sério, de meia idade, que vivia sozinho, acompanhado apenas por seus empregados e adorava amedrontar a criançada, tomamos conhecimento do acontecido: Rochedo, aquele cachorrinho obediente que jamais cometera tal travessura antes, justo naquela madrugada resolvera fazer uma visita à chácara acabando por ser confundido com ladrão, levando um tiro de um dos seus empregados, o Ataíde, que era manco, cujo problema apresentado na perna o fazia se destacar dos outros empregados. O tempo que levou para morrer e se morreu no mesmo instante eu ignorava. O que não dava para ignorar era que, infelizmente, o meu querido Chedim estava morto e enterrado debaixo daquele enorme pé de pãina que havia em frente à chácara, onde tantas vezes, em horário de verão, Maria Lúcia e eu, fugindo do sol, buscando abrigo sob aquela frondosa árvore, fomos esperar mamãe retornar do serviço.

Ambos bem próximos, fora possível ver a terra ainda bem fofa que cobria aquela pequena cova.

Meu primo mais velho não se conformava:

- Aquele Ataíde! Aquele ingrato! Aquele manco!...

O mais triste mesmo fora chegar em casa, encontrar minha mãe sentada à mesa da cozinha com um doce de leite esfriando no prato para mim,acabado de sair do fogo, a rapa na panela também a me aguardar, provavelmente já sabendo do acontecido e idealizando um jeito mais suave para dar-me a notícia quando, num impulso repentino, - vendo seus olhos brilhando em lágrimas, num esforço para se controlar e forçar um sorriso - consegui pronunciar apenas a palavra M A M Ã E...mergulhando-me em seu colo.Quanto mais ela me apertava, mais eu chorava e soluçava.O pulsar dos nossos corações se tornou um só.Compreendi que tínhamos a mesma sensibilidade e sofríamos pelo mesmo motivo.

Talvez tenha sido a ausência de Rochedo que me fez perceber um pouco mais em minha mãe, compreendendo assim que seu estado de saúde não ia nada bem. O mal que lhe afligia estava eu longe de o saber.Só sei que, tão logo o nosso Bom Deus levou Rochedo, levou também a minha mãezinha; isso porque o meu pai ele já o havia levado antes mesmo que eu aprendesse a falar e pudesse chamá-lo de “PAPAI”.
 Aos domingos, as cinco órfãs que ocupavam sempre o mesmo banco, eram o destaque geral da igreja. As três mais velhas de preto fechado e as duas mais novas de preto e branco. E assim, despedi-me da minha vida de menina...

(Fragmento da obra A Pureza De Um Anjo Muito Especial - Luciene Maria - 2008)