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quinta-feira, 9 de julho de 2015

EDUCAÇÃO


09/07/2015 06:36 - Atualizado em 09/07/2015 06:36

Evasão escolar reserva futuro de incertezas a milhares de jovens mineiros

Raquel Ramos e Renato Fonseca - Hoje em Dia



Flavio Tavares/Hoje em Dia

A noite se aproximava e um grupo de meninos na marginal do Anel Rodoviário, na saída para a avenida Cristiano Machado, não tirava os olhos do céu. Em uma espécie de torneio, disputavam quem conseguia manter a pipa voando sem ter a linha cortada pelo adversário.
Mateus*, de 14 anos, sabe exatamente o que fazer para se sair bem na brincadeira. Fora dela, porém, mostra estar perdido. Sem interesse pela escola, já tomou duas bombas e, neste ano, abandonou os estudos antes mesmo do primeiro semestre acabar. “Perdi muita nota, não dá mais para recuperar. Vou ficar seis meses de férias”.
O garoto não está sozinho. Assim como ele, amigos do aglomerado, na região Nordeste de Belo Horizonte, escolheram o mesmo rumo: trocaram os bancos da sala de aula por uma espécie de lazer permanente. Estão soltos no mundo, sem nenhum tipo de responsabilidade.
Mateus e os amigos sabem da proximidade com o tráfico de drogas no lugar onde vivem. “Não mexemos com isso. Só queremos ficar à toa e ter tempo de sobra para soltar papagaio ou jogar conversa fora”, afirma o menino.
Um caminho que pode lhe custar caro no futuro. A advertência está no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 25 anos neste mês. Somente a educação pode garantir “pleno desenvolvimento da pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”.
*Nomes fictícios
82 mil sem estudar - número de alunos fora da escola equivale à população de João Monlevade
Assim como Mateus* deixou os estudos, 4,3% dos alunos matriculados na rede estadual de ensino abandonaram a sala de aula, em 2014. O percentual parece tímido, mas representa 82,2 mil mineiros, de 9 a 17 anos, que perderam a chance de investir em um futuro melhor. Número equivalente ao da população de uma cidade de médio porte como João Monlevade, na região Central.
Aos 13 anos, Serginho* também faz parte das estatísticas. Desde o início do ano, deixou de frequentar uma escola na região Nordeste da capital. Sabe ler e escrever, “e isso basta”, acredita ele.
Sem o aprendizado necessário, que o coloca à margem da sociedade, o adolescente vive uma rotina sem qualquer obrigação. “Quando acordo cedo, solto papagaio”, diz, para logo depois acrescentar: “mas também solto pipa quando acordo tarde”.
A origem da evasão não está necessariamente só no estudante. Os dados refletem problemas no serviço oferecido pela rede pública, afirma Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil.
“Os meninos param de estudar porque o ensino não tem qualidade. Não adianta oferecer vaga para todo mundo, como prevê o ECA, e ofertar um serviço ruim”, critica.
Para ela, melhorias na infraestrutura das instituições e investimento na formação docente e em equipamentos tecnológicos seriam capazes de atrair jovens como Mateus e Serginho de volta à escola.
Fase crítica
Atualmente, os maiores desafios concentram-se nos últimos três anos de estudo. Só no ano passado, 57 mil alunos deixaram a sala de aula enquanto cursavam o ensino médio. A própria Secretaria Estadual de Educação (SEE), responsável por essa etapa, reconhece a importância de reinventar o conteúdo.
Uma das possíveis soluções, segundo a secretária estadual Macaé Evaristo, é dar um viés mais profissionalizante ao ensino médio, oferecendo aulas que já comecem a preparar os adolescentes para o mercado de trabalho. É nessa faixa-etária, de 15 aos 17 anos, que muitos conseguem o primeiro emprego.
No entanto, ressalta Macaé, os problemas que levam alunos a abandonar os estudos extrapolam os muros de uma escola. Assim como municípios e estados têm obrigações, o ECA estipula que as famílias sejam responsáveis por garantir o direito à educação aos filhos.
Em tese
A infrequência ou o abandono, por exemplo, devem ser notificados à direção da escola, que, por sua vez, precisa comunicar o fato aos conselhos tutelares. “Infelizmente, a maioria desses casos está associada à negação de outros direitos, como a exploração da mão de obra infantil”.
Quanto mais periférica a região, pior a infraestrutura
Questões geográficas e sociais interferem não apenas na evasão, como também nas condições estruturais de cada instituição, afirma a coordenadora regional das Promotorias de Justiça da Educação e dos Direitos da Criança e do Adolescente dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, do Ministério Público (MP), Daniela Campos de Abreu Serra.
“Em Belo Horizonte, os problemas são mais graves na periferia do que no Centro. No Vale do Jequitinhonha, ocorre o mesmo. As dificuldades de Teófilo Otoni serão menores que as de Bertópolis, município mais afastado, próximo à divisa com a Bahia”.
O MP tem atuado para coibir irregularidades, garante Daniela. Ocorrências de obras inacabadas e de ausência de merenda escolar, por exemplo, são fiscalizadas pelo órgão, resultando em termos de ajustamento de conduta ou ações judiciais.
Bom Exemplo
Apesar dos vários desafios, há alunos que conseguem se sobressair. Guibson Castro Silva, de 12 anos, é considerado “aluno modelo” da Escola Municipal Daniel Alvarenga, no Conjunto Zilah Spósito, em Belo Horizonte.
Os pais, o pedreiro José Claudio Alves da Silva e a cozinheira Ilnária Castro Bonfim, só puderam estudar até a antiga 7ª série. No que depender deles, a educação será sempre prioridade para o filho.
“Eles já me falaram que eu não tenho a opção de desistir. Enquanto morarmos debaixo do mesmo teto, vou continuar indo à escola”, conta o garoto.
Mas nem precisaria de uma ordem para ele se empenhar. Esforçado, Guibson chega em casa depois da escola, ajuda em atividades domésticas e, logo depois, começa a estudar.
Vitórias
Graças a essa dedicação, passou à frente de mais de 30 alunos e recebeu medalha de ouro na GincaMat 2014, concurso anual da rede municipal de ensino que testa conhecimentos de estudantes em matemática.
E essa não é a única disciplina em que o garoto tira boas notas. “Tenho aulas de história, português, matemática, ciências, geografia, inglês, literatura e arte. Sou muito bom em todas”, afirma sem falsa modéstia.
Apesar da pouca idade, faz planos para o futuro. Quer estudar bastante, entrar na faculdade de veterinária e correr atrás de um bom emprego. “Vou precisar de sabedoria para melhorar de vida”.
Andre Luiz Souza
Estímulo dos pais foi fundamental para que jovem realizasse sonho de virar doutor e morar nos EUA
O pai era motorista de ônibus e a mãe, manicure. Ambos dedicaram pouco tempo aos estudos, mas o casal ficou no pé dos filhos Anderson, Andre e Stephanie. Tanta cobrança, relata André, foi fundamental. Até os 20 anos, ele viveu no Vera Cruz, um dos bairros mais carentes de Belo Horizonte. Hoje, aos 34, é PhD em antropologia e dá aulas nos Estados Unidos.
Quando você entrou para a faculdade?
Entrei na UFMG em 1999. Escolhi letras porque queria um curso que me ensinasse inglês para poder ir embora para os Estados Unidos, sempre tive esse sonho. Para passar no vestibular, estudava pela manhã, trabalhava à tarde (estágio) e voltava a estudar em casa à noite.
Como surgiu a ideia de ir para os Estados Unidos?
O sonho começou cedo. Sempre ouvia casos de pessoas que iam para lá, trabalhavam e voltavam ricos. Queria fazer o mesmo. Meu plano inicial era entrar no país, mesmo que ilegalmente, e procurar um emprego. Quando estava no 3° período de letras, fiquei sabendo de um intercâmbio. Passei em uma prova e fui selecionado pela Universidade do Texas. Chegando lá, me sustentei trabalhando em um restaurante lavando pratos. Também cortei grama e limpei calhas, e ainda tinha tempo de ir às aulas e estudar.
E o que ocorreu depois?
Depois desse semestre nos EUA, voltei ao Brasil para terminar a graduação. No entanto, no período em que estive lá, trabalhei para uma professora que era orientadora de doutorado de uma aluna brasileira. De Belo Horizonte, ajudei as duas a coletar dados para a pesquisa. Fui apresentado a outra professora da UFMG, que me aceitou como aluno de mestrado em psicologia. Em 2007, voltei para os Estados Unidos para fazer meu doutorado em psicologia cognitiva. Terminei o doutorado em 2012 e fui para Montreal, no Canadá, fazer um pós-doutorado na Universidade Concórdia. Em 2013, fui para a Universidade de Oxford para um segundo pós-doutorado em antropologia cognitiva e, em 2014, para a Universidade do Alabama, onde sou professor no Departamento de Psicologia.
Atualmente, muitos jovens da periferia abandonam os estudos e acabam entrando na criminalidade. Que conselho você daria a eles?
Os estudos me ampliaram os horizontes. Muitos jovens da periferia entram no crime porque enxergam aí o único caminho, e talvez o mais fácil, para resolver problemas imediatos, tanto financeiros quanto psicológicos. Para mim, os estudos serviram para me mostrar que existem outras possibilidades. O conselho que eu dou é: seja curioso e explore essas outras possibilidades. É preciso ter força de vontade e saber que as dificuldades sempre existirão.
2,3 milhões de brasileiros, de 10 a 17 anos, não frequentavam a escola em 2010, segundo o IBGE

“Educação é um direito muito mais amplo. O ECA nos dá mecanismos para a efetivação de acesso ao ensino. A lei obriga a matrícula, e há medidas previstas aos pais ou responsáveis pela obrigação da matrícula e acompanhamento da frequência escolar” Daniela Serra - Promotora de Justiça