Nelson
freire ou Mozart?
Cláudio de Moura Castro
“Há a mágica criada pelo grande
pianista e há a mágica, igualmente
notável, do professor inspirado”
pianista e há a mágica, igualmente
notável, do professor inspirado”
Nelson Freire acaba de
tocar uma sonata de Mozart. Aplausos de pé, efusivos. E ninguém menospreza seu
talento, pelo fato de que não só tocou rigorosamente todas as notas de uma
partitura comprada na loja, mas seguiu o andamento anotado por Mozart. O
público festeja o momento mágico criado pela sua interpretação.
Mas espera-se muito mais
de um professor. Sua “interpretação” na aula é pouco. Seguir a partitura é
“escravizar-se ao autoritarismo de um livro”. Ele tem de “criar” a aula,
inventando maneiras de levar o aluno a construir seu mundo intelectual. O pobre
professor tem de ser Nelson Freire e também Mozart.
Por que o professor não
pode ter partitura? Por que as ideias construtivistas que deram certo não podem
ser apresentadas nos livros, para que sejam testadas e usadas? Pesquisas
mostram que, usando “partitura” (isto é, bons materiais), o aluno aprende mais.
Desde os primeiros dias,
um pianista aprende a tocar piano tocando piano. E não vendo um professor ao
quadro-negro. E aprende o tempo todo sob a tutela de um pianista praticante.
Amador ou profissional, o pianista continua tocando para algum mentor mais
ilustre, até o fim de sua carreira musical. É educação permanente.
Já o professor consome seu
tempo com teorias pedagógicas que não consegue aplicar e quase não tem
oportunidades de praticar na presença de um mestre que comente, corrija e retoque
seu desempenho em sala de aula. Não aprende a arte de dar aula. É largado por
sua conta, tendo de inventar a própria partitura. O professor é um deserdado na
sala de aula, ninguém o ajuda, ninguém sabe como é seu desempenho.
O estudo do pianista inclui
duas fases. Primeiro, ele aprende a partitura. Toca pesado e devagar, para
fixar na memória as notas. É a etapa “conteudista” de seu aprendizado. Mas a
formação de professores desdenha essa etapa, embora seja difícil entender como
é possível ensinar sem dominar bem os conteúdos.
Sabida a partitura, o
pianista estuda a interpretação que vai dar a ela. Para isso, ouve os melhores
intérpretes e discute com colegas e professores. Já o professor, entupido com
teorias, raramente pratica diante de mestres mais experimentados. Essa parte
foi sub-repticiamente subtraída de sua formação.
O pianista se sabe um
ator. O professor foi ensinado a ignorar sua função nobre e a menosprezar o
palco da sala de aula.
A performance do pianista
é julgada pela plateia e pelos críticos. Não interessa o diploma, pois tudo o
que está sendo avaliado acontece na sala de concertos. Já o professor se sente
ameaçado quando alguém decide indagar dos alunos como ele funciona em sala de
aula. Perde-se o feedback e a melhoria de desempenho resultantes. Nem pensar em
dar aula a um inspetor, como na França.
Esse é o grande equívoco,
professor produz na sala de aula, mas é julgado pelo que nada tem a ver com a
dita. Os diplomas não são concedidos a quem é inspirado na sala de aula, mas a
quem passa em provas de conhecimentos. Só se julga o que não interessa. Só nos
cursinhos o desempenho em sala de aula é o fator crítico para a contratação.
Os pianistas começam a
aprender com o melhor pianista que encontram e continuam, por toda a vida,
tocando para bons intérpretes. Os professores aprendem com quem jamais se
celebrizou pela interpretação (isto é, na sala de aula), embora tenha muitos
diplomas para mostrar. Quando penso nos critérios usados para selecionar quem
vai ser o professor do professor, lembro que nunca ouvi falar de uma busca
pelas grandes estrelas em sala de aula. Onde estão os mestres que seduzem e
hipnotizam?
A interpretação não é uma
arte menor. É lá que se incendeiam as mentes, se inspiram os alunos e se
desencadeiam os processos que levam ao aprendizado. Há a mágica criada pelo
grande pianista e há a mágica, igualmente notável, do professor inspirado.
Fico pensando, ao ver como
se preparam nossos pianistas e como se preparam nossos professores: por que não
aprendemos com os pianistas como preparar nossos professores?
Fonte:
Revista
Veja, <http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>, de 4 de
dezembro de 2002. Acesso em 24 de março de 2016.
Colaboração para o blog: Álvaro Luiz