(Maria Luciene)
Removida pela Secretaria de Educação no final de julho de 2006, assumi o cargo na nova escola - Belo Horizonte, MG - no dia 1º de agosto do referente ano. Fui a terceira professora de português da turma de 5ª série. Os alunos eram realmente muito difíceis. Nos Conselhos de Classe, a insatisfação dos professores, acompanhada pela frustração e sensação de incompetência era geral. Alguns alunos apresentavam um histórico familiar bastante comprometedor, perceptível no seu rendimento e comportamento. Mais da metade da turma não lia nem escrevia. Quase sempre não portavam os materiais necessários. Havia os que nunca tinham as atividades propostas, sob a alegação de que estariam passando o caderno a limpo, o que parecia interminável. Em reuniões de pais, uma meia dúzia comparecia, geralmente da minoria que se esforçava por aprender.
Tão logo cheguei à escola, a diretora me expôs a realidade da classe, o que me levou a procurar uma metodologia que os atendessem em suas necessidades. Fiz o que pude. O resultado não fora de todo satisfatório. Tive dificuldade na execução da proposta de trabalho por se tratar de uma turma bastante heterogênea, dividida em três grupos: a minoria que dominava um pouco melhor o conteúdo fazia críticas ao meu trabalho com os outros professores, alegando que as minhas aulas eram primárias e desinteressantes. Por outro lado, algumas mães me procuram para conhecer a professora que estaria fazendo seus filhos se interessarem mais pelas aulas, se preocupando em fazer os deveres de casa e estudar para as atividades avaliativas. Havia ainda os que, quando não estavam brigando entre si, passavam a maior parte do tempo ou dormindo ou rabiscando desenhos em folhas isoladas de caderno. As meninas davam gritos estéricos e o vocabulário era pesadíssimo. E assim, o que trazia motivação para uns, desmotivava a outros, ainda que a minoria. Era realmente impossível ministrar aulas naquela classe. Apesar de uma boa administração e de todo o rigor na disciplina, havia ainda os alunos que conseguiam matar aulas. Nós, professores, procurávamos nos ajudar uns aos outros desenvolvendo estratégias coletivas As expectativas nem sempre eram correspondidas.
Certa manhã, entrei na sala e, como de costume no último horário, a turma estava eufórica. Mais da metade da sala se encontrava amontoada a um canto. Tão logo perceberam a minha presença, alguns começaram a gritar, denunciando o incômodo sofrido por um colega. Imediatamente percebi que o mesmo lançava um pequeno objeto em direção à vidraça da janela provocando o reflexo da luz solar nos olhos dos colegas. Sem pensar duas vezes, dirigi-me até o grupo, pedi-lhe o objeto e, certificando-me de que se tratava de algo insignificante, um pequeno pedaço de filme semelhante a uma radiografia, dobrei-o por várias vezes e o depositei na lixeira, exigindo todos assentados e as carteiras organizadas. A reação do aluno fora imediata. Argumentou que eu havia destruído o filme da sua calculadora e que no dia seguinte sua mãe estaria no colégio para falar comigo. Esse aluno destacava-se do restante da turma por apresentar uma condição financeira mais razoável. Estava sempre levando um brinquedinho e outro, visando distrair a atenção dos colegas. Não satisfeito, após a oração, ritual de todas as manhãs, quando finalmente todos já estavam acomodados e a sala organizada, o aluno, percebendo que eu me preparava para corrigir os exercícios do dia anterior, levantou-se do seu lugar, dirigiu-se à minha mesa e, com a folha de exercícios nas mãos, falou firmemente:
- A senhora destruiu o filme da minha calculadora, não foi? Pois agora eu rasgo a sua folha de exercícios! Posicionado em minha frente, após executar o ato, retornou ao seu lugar, deixando a mim e a turma estarrecidos. Aquela folha de exercícios seria para estar colada no seu caderno desde a aula anterior! Era a tarefa de casa e continuava em branco! O silêncio fora geral. Vencido o impacto do momento, conduzi o aluno à diretoria, coisa que nunca fazia, expus à diretora todo o acontecido sem isentar a minha parcela de culpa, concluindo levar-lhe sim outra calculadora no dia seguinte, exigindo imediatamente a presença da sua mãe no colégio, para que os fatos fossem definitivamente esclarecidos. Deixei o aluno na diretoria e retornei à sala de aula que, para minha surpresa, continuava quieta, dado o meu retorno. Acho que ainda em estado de choque. Foi impossível prosseguir com a aula. Os ânimos estavam exaltados. Por outro lado, sabia que a qualquer momento seria interrompida convocada a comparecer novamente à diretoria,dada a chegada da mãe do aluno. Sem tirar os olhos da direção do portão, percebi a entrada de um casal, que provavelmente seriam os pais do garoto. Vendo –o correr para abraçá-los,minhas suspeitas se confirmaram. Fiquei ainda mais angustiada. Eu o havia deixado na diretoria. Seria lá que ele deveria ter aguardado até a conversa definitiva! Pensei comigo: “- agora ele irá encher a cabeça dos pais contra mim. O pior é que eu errei e não tenho o direito à defesa...”.
Instantes depois fui solicitada à diretoria.
A aula chegava ao final.
Fitando o olhar naquele senhor que provavelmente seria o pai do aluno, fui correspondida com frieza e indiferença. Entendi que o meu raciocínio estaria correto. Prevendo uma conversa difícil, na tentativa de ganhar fôlego e acalmar os ânimos, após a apresentação, sem me deixar intimidar, iniciei a conversa lendo um artigo escrito por mim mesma, publicado pelo jornal do qual na época era colunista e escrevia sobre educação ;artigo esse que, por coincidência, estava no meio dos meus pertences e trazia a fala do então Ministro da Educação, Fernando Hadad, o qual expunha a importância do papel da família no desempenho escolar dos filhos. Pouco a pouco, entre uma pausa, uma observação e outra, agradecendo-os pela presença e participação conjunta na resolução daquele episódio, fui introduzindo o assunto. Éramos assistidos pela presença da diretora e da orientadora, o que me deixava bem mais segura. Era importante que os fatos se resolvessem ali, naquele momento, tudo às claras. O pai, embora apenas ouvisse o relato dos fatos, se revelava tão angustiado quanto eu. Mãe e filho permaneciam indiferentes. Praticamente alheios à conversa. Após relatar o acontecido, passei a palavra para o aluno, abrindo espaço para contestação, caso eu houvesse deturpado ou omitido algum fato, o qual, tendo se mantido calado até aquele momento, se posicionou dizendo estar correto o relato. Perguntei-lhe se teria algo a acrescentar. Respondeu-me que não. Finalmente o pai se posicionou, não em defesa do filho. Pelo contrário. Desculpou-se pelo ocorrido. Parecia envergonhado pela atitude do filho, fitando-o amavelmente, levando-o a me pedir desculpas. Contestei a iniciativa. Disse ser desnecessário o fazer, uma vez que eu havia errado primeiro. Afirmei ainda que praticamente induzi seu filho àquela reação. Assim como eu havia destruído algo muito importante para ele, ele, por sua vez, revidou destruindo algo também muito importante para mim. Afinal, as atividades eram sempre preparadas com muito empenho, às vezes tarde da noite, após um exaustivo dia de trabalho correndo de uma escola para outra. Mesmo assim, o pai, entendendo que o filho havia desrespeitado minha autoridade de professora, amavelmente solicitou ao filho que o pedido de desculpas fosse efetuado. Quanto à calculadora, pediu-me que esquecesse o ocorrido, concluindo ser comerciante, tendo o objeto à venda em seu estabelecimento. Ambos mais calmos, antes de nos despedirmos, o mesmo disse se retirar bem mais aliviado, haja vista que havia recebido um telefonema da escola pedindo o seu comparecimento urgente por se tratar de assunto referente ao seu filho. Disse ter pensado em tudo pelo caminho. Chegando ao colégio e avistando um carro de polícia parado na porta, quase não teve forças para entrar. Somente se sentiu aliviado quando viu o garoto correr para abraçá-lo. Depois daquele relato meu dia acabou. Imaginei-me em sua condição e muito me culpei pela angústia causada àquela família. Visando encerrar definitivamente o assunto, procurei comprar-lhe uma calculadora diferente das que o seu pai poderia ter disponível à venda, cujo aluno ficou muito feliz ao recebê-la, apesar de continuar sem fazer as atividades propostas e dando muito trabalho a todos nós, professores. Era um garoto indiferente às aulas, porém, tanto levado quanto amável. No primeiro dia letivo após o recesso da Semana do Professor, tão logo me vira chegar ao colégio correu ao meu encontro, afirmando haver levado um presentinho para mim, concluindo que me daria na sala de aula. Agradeci-o antecipadamente. No recreio, uma professora mostrou ao grupo o presentinho que o mesmo havia lhe dado. Era um anjinho de porcelana. Senti-me surpresa. Como fora a única contemplada dentre os professores, relatei-lhe o ocorrido e concluímos todos juntos que, como sua aula fora antes da minha, ele, provavelmente visando se livrar logo da encomenda, resolvera mudar de ideia oferecendo a lembrancinha à primeira professora que entrasse na sala. A grande coincidência era que coleciono anjinhos e aquele, por sinal, ficaria muito bem em minha coleção.
Esse aluno continuou por mais um ano no colégio. Sempre que o via correndo pelo pátio, alegre e feliz, pensava no meu anjinho desviado.
Maria Luciene -2006