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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

LITERATURA

"A Cidade e as Serras " , O romance póstumo de Eça de Queirós

Texto publicado após a morte do escritor português não foi revisado totalmente pelo autor

Marina Morena Costa, iG São Paulo

“A Cidade e as Serras” é uma obra póstuma de Eça de Queirós, publicada em 1901, um ano após a morte do escritor português. Apesar de o romance estar praticamente pronto, a versão final ainda não tinha passado por todas as revisões que Eça costumava fazer. Em busca do perfeccionismo estilístico, o autor revia inúmeras vezes o texto e fazia alterações, até mesmo no desfecho da história.

“O romance não está totalmente referendado pelo autor. Não temos nem como saber se o final seria esse mesmo”, diz Helder Garmes, doutor em Letras e professor da Universidade de São Paulo (USP). Eça dedicava atenção especial ao desfecho de seus romances. O final vinha sempre a reforçar uma tese trabalhada no livro ou relativizá-la. “Os finais são de fato um espaço privilegiado para o autor. Este é um tanto desautorizado”, afirma o professor.

O escritor português, Eça de Queirós

Desenvolvimento do conto “Civilização” (1892), o romance trata de um tema obsessivo para o autor, a discussão do que é ou não civilização. Em “A Cidade e as Serras”, a cidade é a capital francesa, Paris, e as serras são Tormes, no interior de Portugal. “Eça critica o projeto civilizatório e a falsidade da noção de que a civilização europeia seria superior ao resto do mundo”, avalia Garmes, que coordena o projeto de pesquisa “Perspectivas críticas da obra de Eça de Queirós” na USP.

No livro a oposição entre campo e cidade trabalha os temas barbárie e civilização. Mas Eça mostra que tanto em um espaço quanto no outro há exploração do trabalho, relações desiguais e exploratórias. “É interessante notar que o autor desenvolve os aspectos sociológicos. Há uma crítica à falta de compromisso da classe dirigente com o projeto de país e com os trabalhadores”, destaca Garmes.

Análises

Até meados do século 20, alguns críticos defendiam a teoria de que a fase final do autor seria uma reconciliação dele com sua pátria, Portugal. Em “A Cidade e as Serras”, Jacinto, o personagem principal, deixa Paris e volta para Tormes, onde se apaixona pela serra, pela comida e pela simplicidade da vida no local. Algumas leituras veem esse romance como um elogio à terra natal, em detrimento do progresso de uma vida fútil em Paris.

Garmes explica que, mais recentemente, a crítica literária percebeu que Eça havia mudado a forma de criticar Portugal, após o próprio ter deixado o país para morar em Paris. “Ele não havia se reconciliado e continuava sendo irônico e extremamente crítico”, aponta Garmes.

Há muitas maneiras de interpretar a obra do escritor português. Uma das análises possíveis é a de que o autor queria retratar a realidade portuguesa da segunda metade do século 19. Em “A Cidade e as Serras”, ele faz uma crítica à visão da elite portuguesa de que Portugal seria um país fadado a ser agrário religioso onde a simplicidade seria a única qualidade. “Em sua fase final, Eça deixa de lado sua parte mais polemista e crítica. Mas ele sempre olhou Portugal com um olhar crítico e áspero.”


“Vidas Secas”, o sertão brasileiro na ótica de Graciliano Ramos

Romance trata das raízes da opressão no campo brasileiro e se mantém atual nos dias de hoje

Marina Morena Costa, iG São Paulo


A saga de uma família nordestina em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, começa com uma cena árida: a mãe lambe o focinho sujo de sangue da cadela de estimação. Baleia havia matado um preá, único alimento disponível, e Sinhá Vitória não podia desperdiçar nenhuma gota do animal.

“A obra trata das raízes da opressão no campo brasileiro. Graciliano cria personagens com características do opressor e do oprimido”, afirma Belmira Rita da Costa Magalhães, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFA) e autora de uma tese de doutorado sobre “Vidas Secas” e a construção autoral do escritor alagoano.

Graciliano Ramos em sua escrivaninha

Para compreender “Vidas Secas” é fundamental conhecer o Brasil, avisa a especialista. Na obra, o autor mostra como se dão as relações de poder, como se forma “aquele que não pode responder, que não pode fazer contas” e, do outro lado, “aquele que dita as regras, que manda embora”. “Graciliano foca no Nordeste, onde as relações do campo são mais brutais, grosseiras. Mas os conflitos presentes no livro estão também em outros tipos de relação e até mesmo nas cidades”, avalia Belmira.

A análise de “Vidas Secas” da pesquisadora destaca o papel feminino na trama. Sinhá Vitória quer uma vida melhor, e é por causa de seus sonhos que a família avança e conquista condições melhores. “Ela quer uma vida melhor e expressa isso no desejo de ter uma cama, onde ela possa deitar e não sentir dor. Sinhá Vitória impulsiona o romance pra frente.”

A família se instala numa fazenda – onde Graciliano explora as relações sociais e de trabalho – e os desejos aumentam. Sinhá Vitória passa querer outras coisas, como um lampião, um vestido florido, um guarda-chuva, um sapato de salto alto para ir à cidade. Itens menos essenciais e ao mesmo tempo extremamente simples, que evidenciam as condições precárias da família.

Feminino

“Graciliano mostra que os seres humanos são capazes de se transformar”, enfatiza Belmira. No primeiro capítulo, não há falas. Os personagens apenas emitem sons, como animais. No entanto, com o desenrolar da trama, passam a conversar, até que no último capítulo há um diálogo entre eles. E os sonhos ficam cada vez maiores: como colocar os filhos na escola. “Esse caminho da transformação do ser humano é mostrado belamente em ‘Vidas Secas’ e sempre impulsionado pela mulher”

Para Belmira, o fio condutor da transformação não poderia ser o masculino, o personagem Fabiano, pois seria inverossímil. “É ela quem calcula quanto Fabiano deve receber do patrão, mas é ele quem vai cobrar. A história se passa no campo, profundamente atrasado, onde a mulher não pode agir. Mas no romance ela conduz.”

Atual

“Quando vemos as relações no campo hoje – a discussão sobre a reforma agrária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a preocupação e a necessidade de alimentar a população e as cidades –, o romance é atualíssimo”, destaca Belmira.

A professora diz que “os meninos” não gostam muito de ler “Vidas Secas” hoje em dia: “Mas é porque os professores não trabalham todas essas coisas em sala de aula”.