CARTA QUE UMA ADOLESCENTE NÃO TEVE TEMPO DE ESCREVER À SUA MÃE
“ Querida mãezinha...
Hoje
venho te segredar um recadinho muito especial. Sabes o que é? Estou
deixando de ser criança para entrar em uma, na opinião da humanidade,
difícil e delicada fase da vida que é a adolescência. Alguns adultos,
estressados, consideram-na a “ABORRECÊNCIA” , criando para nós mais este
rótulo, o que muito discordo.Sabes por quê? Porque se hoje são adultos,
um dia já foram adolescentes e não gostariam se fossem tratados assim.
Além do mais, eles é que nos aborrecem com essa mania de que são
perfeitos demais enquanto que nós, adolescentes, para muitos somos
vistos apenas como irresponsáveis,inconseqüentes, e, agora, também, como
aborrecentes.
Certamente
este é o momento das nossas vidas em que mais necessitamos do apoio
tanto da família quanto dos nossos professores: do seu carinho, do seu
perdão, da sua compreensão e ,sobretudo ,do seu amor. A despedida do
corpo e sonhos infantis e a busca de uma personalidade adulta muito nos
levarão à rebeldia ,o que implica em: ora o desinteresse pelos estudos,
ora a busca da solidão, ora o desprezo pelos seres e as coisas do mundo
externo, ora a implicância com determinado professor levando os pais a
acreditarem no nosso mirabolante poder de tentativa da destruição da sua
imagem justamente pelo fato de a sua sapiência e a sua imagem austera
insistirem em nos denunciar que estamos ainda muito aquém daquilo que
prosperamos, ora a necessidade de estarmos agrupados onde fazemos
prevalecer a nossa auto-suficiência, ora a generosidade, ao o egoísmo
... E até mesmo o abandono à família.
A busca da independência fala mais alto!
Certamente mais tarde, com mais
lucidez, sejamos capazes de avaliar e muito nos arrependermos das
catástrofes deixadas para trás.
Tudo isso em nome da nossa tão sonhada auto-afirmação!
Confesso que os anseios desta
fase começam a inquietar-me o coração. Nas minhas mais profundas
reflexões o meu interior é tomado por sensações de vazio, angústia e
medo.Procurando refugiar-me no mundo exterior deparo-me com algumas
incômodas situações insistindo em denunciar que o meu corpo esteja em
transformação distanciando-me cada vez mais dos padrões de beleza
impostos pela mídia. E o medo da rejeição nesta fase, o que nos dá
tantos arrepios, às vezes nos levando a nos afastarmos até mesmo das
pessoas a quem mais amamos!
Mãezinha, querida, neste momento
tão especial, por todo o amor que eu te tenho,peço-te o teu perdão
antecipado por todas as vezes que, mesmo inconsciente, julgando-me
superior a ti, vier a achá-la chata , careta, controladora... E sentir
vergonha de estar ao teu lado por causa dos teus excessivos cuidados ,
muito vindo a magoar-te o coração.
Vamos vencer juntas esta fase! Amo-te muito, bem o sabes!
Neste raro momento de tamanha
lucidez interior reconheço, mãezinha querida, que para todas as mães,
nós filhos seremos sempre suas eternas e desprotegidas criancinhas,
ainda que já bem velhinhos!
Como sei que serás sempre a
minha eterna guardiã, guarde no fundo do teu coração esta minha cartinha
a qual poderá vir a se tornar a tua cartilha diária até esta fase
passar. Ah, e não te esqueças! Nunca deixem que nos chamem de
aborrecentes!”
(Extraída do livro Resgatando os Valores da Escola Pública - Maria Luciene - págs. 47 - 51)
Publicação: Maria Luciene - Jornal Folha de Minas – Junho/2006
Kênia Regina faleceu em junho de
2006 ,aos 16 anos de idade, vítima de acidente de moto, uma semana após
participar de uma excursão à cidade de Ouro Preto – MG- em companhia
dos professores e colegas da Escola Estadual Maria Andrade Resende –
Belo Horizonte – MG - escola em que cursava o 2º ano médio. O inesperado
falecimento de Kênia surpreendeu até mesmo aos pais, que não sabiam da
aventura da filha. Acreditaram que ela estivesse passando a tarde
daquele domingo na casa de uma colega, conforme afirmara e obtivera
permissão para tal. Era dia de jogo da Seleção Brasileira. Tendo
conhecido o amigo da colega naquela mesma tarde, os dois partiram para
uma, na opinião de ambos, rápida aventura à cidade de Ouro Preto , sendo
que Kênia Regina confiou à colega querer retornar à cidade apenas para
provar o chocolate com chantilly que não experimentou no dia da
excursão. O que Ela não sabia era que aquele chocolate teria um gosto
assim tão amargo. O rapaz também faleceu no acidente.
Essa carta foi uma homenagem dos
colegas e professores a Kênia Regina. Foi também um alerta aos
adolescentes para que valorizem a vida sem ultrapassar suas limitações.
ARMADILHAS DO DESTINO
A ideia de escrever essa carta
surgiu de uma conversa entre uma aluna, sua mãe e eu, certa manhã de
março de 2006. A mãe, atônita bate na porta da sala e, acompanhada pela
presença da filha que naquele exato momento perdia a primeira aula , se
apresenta, tão logo a porta é aberta, buscando informações mais precisas
sobre o comportamento e o rendimento da filha. Sem entender o porquê de
tamanha aflição, disse-lhe ter sentido a falta da garota na sala de
aula logo que entrei, concluindo ser a mesma uma excelente aluna,
frequente em todas as aulas, cumpridora dos deveres, boa conduta ética,
não havendo portanto nenhuma reclamação a ser feita. A senhora,
demonstrando um semblante de muita aflição, expôs-me o toda a sua
decepção com a filha em quem até então tanto confiara: há dias a menina
vinha argumentando para a mãe se necessário permanecer por mais algum
tempo no colégio após o termino das aulas alegando precisar fazer
trabalhos escolares marcados pelos professores. Desconfiada da freqüente
situação a mãe resolve seguir a filha e se depara com a árdua e
inaceitável realidade de que sua filha, que jamais a havia decepcionado,
não era mais aquela submissa e obediente garotinha de antes. Como em um
passe de mágicas o tempo havia passado e a sua tão amável e obediente
menina começava a ensaiar os primeiros passos rumo ao desabrochar da
adolescência! Aquela garota, junto a um grupos de colegas, levava roupas
na mochila e assim que o sinal anunciava o término das aulas trocavam o
uniforme e iam se encontrar com seus namoradinhos em local descampado!
Ouvi atentamente o desabafo
daquela mãe que provavelmente esperava minha atitude de reprovação pelo
acontecido. Eu não estava decepcionada. Minha aluna era brilhante.
Reservada, educada, caprichosa e dedicada aos estudos. Estava apenas
surpresa diante da estupefação da mãe e de tudo o que ouvira. E assim,
enquanto conversávamos, eu buscava a todo instante encontrar pontos
positivos naquela assustada e envergonhada garota, procurando meios para
acalmar sua mãe ,entendendo perfeitamente a aflição de ambas: A filha
não conseguia esconder seu constrangimento por ter traído a confiança da
mãe, e agora, também, da professora com quem tinha tanta afinidade. A
mãe, por sua vez, se via obrigada a admitir, ainda que inconsciente,
muito mais a sua surpresa diante da nova realidade do que propriamente a
sua decepção com a filha, por maior que esta tenha sido.
Como aquela tímida garota não
deveria estar necessitando de outros tipos de cuidados maternos
ultrapassando os limites da preocupação e da vigilância!
Como aquela mãe não deveria
estar necessitando de alguém que naquele momento a orientasse sobre como
lidar com essa nova fase da vida da sua filha!
Ambas precisavam urgentemente de ajuda!
Em um determinado momento da
conversa eu disse àquela mãe que o acontecido seria sim um marco na vida
da filha o qual, mesmo com o passar dos anos , ela jamais o esqueceria.
Contudo, afirmei-lhe com veemência haver sido único o episódio
ocorrido.Concluí fazer a afirmação com tamanha altivez por confiar na
integridade da minha aluna. Conversamos por mais alguns instantes. A
mãe, já mais calma, antes de se despedir pediu-me educadamente que
conversasse com sua filha ressaltando o quanto a mesma me respeitava e
me queria bem. Naquele instante olhei para a garota e percebendo-a
bastante envergonhada, entendi que seria melhor não ficar para assistir
às aulas naquela manhã , devendo acompanhar sua mãe de volta para casa.
Foi então que a aluna, tendo se mantido calada e cabisbaixa durante todo
o tempo em que durou a conversa, lançou-me um suplicante olhar
argumentando preferir ficar na escola. Apesar de só ter querido ajudar
percebi o quanto havia sido infeliz na observação feita! Realmente,
naquele exato momento, mãe e filha necessitariam de um tempo para se
recomporem intimamente.
Certa de que sua mãe partira
mais calma entramos juntas na sala e aquele finalzinho de aula prossegui
como se nada houvesse acontecido , para decepção da turma que parara de
fazer as atividades , atenta à conversa por detrás da porta que se
mantivera todo o tempo encostada. Era de estranhar o silêncio advindo de
uma turminha de 7º ano ,com 39 alunos, jamais bem comportados! Tão logo
a porta se abrira difícil fora correrem para os seus assentos sem se
atropelarem entre si.
Nos dias que sucediam o
acontecido eu ia percebendo a aluna cada vez mais próxima a mim. Vez por
outra ela , conhecendo bem a forma como eu procurava conduzir as minhas
aulas, timidamente se dirigia à minha mesa, no intuito de agradar-me
oferecendo-me livrinhos educativos que pudessem ser úteis ao aprendizado
da turma. Sempre que o fato acontecia agradecia-a pela gentileza e
aproveitava a oportunidade para perguntar como iam as coisas sua a qual
baixava a cabeça e respondia, quase sussurrando, que estava tudo bem.
Como se esquivava ao assunto restava-me respeitar o seu silêncio.
Aproximando a data do Dia das Mães propus-lhe a escrita de uma cartinha á
sua mãe prometendo ajuda-la caso aceitasse. E foi assim que a singela
cartinha fora ganhando forças , acabando por se tornar o retrato de
praticamente todo adolescente,impossível de ser lida apenas por mãe e
filha entre quatro paredes.
Nota
O objetivo do editor do jornal
para o qual eu trabalhava na época como colunista seria que a carta
fosse publicada na edição do Dia das Mães de 2006, o que não aconteceu, a
qual trazia o seguinte título: “Carta Que Todo Adolescente Gostaria de
Escrever à Sua Mãe Neste Dia Tão Especial” . O editor insistia na
publicação. Como já havia passado o Dia das Mães , pensei em mudar o
título. No mês seguinte aconteceu a fatalidade envolvendo uma outra
aluna minha, de outra escola. Percebendo a tristeza dos colegas e o seu
assento vazio nas aulas de literatura, propus-lhes uma homenagem á
colega ausente. Imediatamente a ideia fora aceita. Discutimos um novo
título que não se distanciasse muito do atual. Entramos em contato coma
família, que imediatamente se dispôs a colaborar com o envio de fotos e
depoimento sobre o faro ocorrido. A publicação teve grande repercussão
vindo a se tornar assunto de debate em sala de aula de diferentes
escolas. Muitos me procuravam para saber se a ex-aluna, Kênia Regina,
havia deixado a carta escrita. Um jornal de outra cidade se interessou
pela publicação. A concessão fora feita e a carta ainda mais divulgada. E
assim obtive, finalmente, a oportunidade de demonstrar o meu repúdio à
expressão contemporânea “ABORRECENTES” , hoje muito comum no
vocabulários dos pais e psicólogos.
Somente depois dos
acontecimentos dos fatos pude compreender as armadilhas do destino,
visto que a carta estava pronta para ser publicada no Dia das Mães e não
o foi.